Por: Marcos Aurélio Chagas.
Em meio ao cenário deslumbrante do Taiti, as águas cristalinas de Teahupoo recebeu alguns dos melhores surfistas do planeta pela segunda vez em 2024, levando a cultura do surfe ao maior palco do esporte global. Há 15 mil quilômetros de distância da Cidade Luz, sede olímpica, Teahupoo teve a chance de ser protagonista, por um dia, o grande público pôde sentir a adrenalina, ver as belíssimas imagens, e admirar toda a beleza que um bom dia de surfe pode proporcionar, sem sequer desconfiar de todo perigo que envolve o pico.
Quando a competição começou, o time americano parecia que iria dar um baile nos demais, todos os surfistas venceram suas baterias na primeira fase, avançando direto para a terceira rodada. Caroline Marks e John John Florence foram os maiores destaques do primeiro dia, eles somaram 17.93 e 17.33 respectivamente.
Felipe Toledo não avançou em primeiro em sua bateria de estreia, então teve que passar pela repescagem, nesta fase, Felipe surfou a melhor bateria de toda sua carreira em Teahupo, o champ somou 17.00 pontos, mostrando ao mar e aos desconfiados que ali surfava um bicampeão mundial, ele parecia incontestável diante de Billy Stairmand, Filipe não sucumbiu à pressão, mas sim, superou-a. No Round 3 a história foi bem diferente, com a prioridade nas mãos, por duas vezes Felipe dropou em ondas que não rodaram, visivelmente, a falta de quilometragem naquela bancada foi um inimigo maior que as desconfianças sobre suas habilidades naquele tipo de onda, somando 2.46, Felipe foi eliminado nas oitavas de final pelo japonês Reo Inaba, que passou somando lamentáveis 6.00 pontos.
Se os americanos tinham tido uma abertura perfeita, classificando todos os seus surfistas (homens e mulheres) direto para o round 3, ao começar este round, digamos que a euforia deu lugar à desilusão. Em um espaço de apenas duas horas, dois favoritos do time americano saíram derrotados de um mar que tinha altas ondas, Griffin Colapinto e John John Florence deram adeus não somente a possibilidade do ouro, mas também, a qualquer tipo de medalha ao perderem para Kauli Vaast e Jack Robinson, respectivamente.
Quando Gabriel Medina entrou na água, parece ter entrado com a missão de acertar as contas com a verdade. Três anos depois, novamente em uma olimpíada, Kanoa Igarashi vestia a lycra do adversário de Medina, no Japão, a subjetividade proporcionou uma vitória massivamente contestada ao japonês, em Teahupoo, Gabriel não deixou a menor margem para qualquer possibilidade que não fosse uma vitória esmagadora. Cortejando a insanidade, Gabriel remou para aquela que aparentemente foi a maior onda surfada na competição, despencou com um sorriso no rosto, colocou a prancha em um trilho que só ele parece conhecer, se colocou em velocidade máxima dentro de um dos maiores tubos já vistos naquela bancada, e, pela segunda vez este ano, saiu do sinistro salão azul pedido 10.00 pontos, ao sair da onda, com a certeza de ter feito a melhor onda do dia, ele se catapultou com o braço direito levantado e o dedo em riste, indicando ser ele o número 1 naquela onda, o fotografo francês Jerome Brouillet capturou o momento, eternizando ele em uma foto que viralizou em todo o mundo, se tornando a imagem mais icônica desta olimpíada, talvez de todas.
O 10 não veio, os criteriosos juízes acreditaram que 9.90 era mais justo, ainda assim, Gabriel Medina fez a maior nota do evento e da modalidade surfe na pequena trajetória olímpica do esporte. Enquanto concordávamos em discordar da nota recebida por Gabriel, Kanoa surfava merrecas para os padrões do dia, Gabriel tinha apenas a função de manter a prioridade sob seu domínio, não dando nenhuma chance para reação do japonês. Foi uma bateria onde um se apresentou e o outro admirou. Nas redes sociais Kanoa se adiantou ao tratar a bateria com humor, antes que algum hater lhe dissesse que ele nunca foi bom o suficiente para poder competir de igual para igual com Gabriel, muito menos naquelas condições.
Enquanto isso Chumbinho e Ramzi remavam calmamente para o lineup de Teahupoo, quando a bateria começou, nós assistimos a aquela que certamente foi a bateria mais disputada desta olimpíada, Chumbinho e Ramzi se digladiavam, cada onda era uma luta entre a vida e morte, mas gladiadores não tem medo da morte, apenas da vergonha, a única certeza verdadeira que eles tinham era que podiam acreditar neles mesmos, e assim, a cada onda, um tirava a liderança das mãos do outro, como criaturas insanas que fogem do controle de si mesmo, deixando apenas seus instintos mais aguçados agirem. Completando tubos cada vez mais profundos, recebendo pontuações cada vez mais altas, um impunha ao outro a obrigação de flertar com a perfeição, sem nos confundir com bobagens, João Chianca e Ramzi Boukhiam nos fascinou com o brilhantismo que apresentaram dentro d´agua, Chumbinho venceu o confronto somando 18.10, Ramzi fez a maior nota da bateria 9.70, e todos ganharam com o espetáculo da mais pura essência do surfe em ondas de consequência.
A nota negativa neste dia foi o fato da ISA ter encerrado as competições quando ainda poderia ter ao menos mais quatro horas de surfe, seria bom ter visto Gabriel Medina e João Chianca naquelas condições insanas. Neste interim a ISA afastou também o juiz australiano Ben Lowe, em virtude de uma imagem do juiz australiano posando com os também australianos Bede Durbidge, técnico da equipe australiana e Ethan Ewing, competidor da equipe australiana, a ISA disse: “É inapropriado que um juiz interaja dessa maneira com um atleta e sua equipe. Para proteger a integridade e a imparcialidade da competição em andamento, e de acordo com o Código de Conduta da ISA e o Código de Ética do COI, o Comitê Executivo da ISA decidiu remover o juiz do painel de jurados pelo restante da competição.” Achei a decisão da ISA acertada, já os australianos, nem tanto, ao observar pelos posicionamentos de alguns “colunistas”.
No dia seguinte, as quartas de final entraram na agua com o mar bem menor e meio torto, totalmente diferente do mar do Round 3, nas quartas, nada de excepcional aconteceu, além da convicta derrota de Carissa Moore. Posteriormente, Carissa declarou ao mundo, de cabeça erguida, a sua aposentadoria do surfe competitivo. Carissa tem sido um pilar no surfe, deixa um legado de vitorias, sacrifícios e simpatia, competindo, ela conquistou os títulos de pentacampeã mundial e campeã olímpica, agora chegou a hora dela abdicar da lycra, alimentar o espirito, aproveitar as coisas boas da vida, e poder ser simplesmente a menina do Havaí reconhecida carinhosamente pelos amigos como “Riss”. Como alguém que viu Curren, Carrol, Occy, Kong, Nick Wood, todos os Shanes, Kelly, Rob Machado, Fabinho, Andy, Mick e Steph, só resta reconhecer sua grandeza e dizer, Obrigado Carissa Moore! – Quando pensarmos nos maiores, seu nome estará no topo dessa lista.
Depois de longuíssimos dias de espera, o “grande” dia da final começou, com o mar pequeno e uma agua azul hipnotizante, linda para quem assiste, mas muito abaixo daquilo que Teahupoo pode exigir de melhor em termos de performance aos seus desafiantes. Logo no primeiro confronto do dia, o peruano Alonso Correa e o francês Kauli Vaast se jogaram nas marolas executando manobras de borda, tentando arrancar a maior pontuação possível dentro daquilo que o mar proporcionava, mas o conhecimento local e o faro de Kauli Vaast, conseguiu conduzi-lo para dois tubos bem apertados, nada impressionante, mas o suficiente para atingir um somatório de 10.96, com esse placar Kauli confirmava todas as expectativas, se colocando como primeiro finalista em Teahupoo.
Na bateria seguinte, Gabriel Medina e Jack Robinson começaram a disputa trombando um no outro na remada, trocando braçadas com o intuito de se manterem no pico, para ficar em situação de prioridade quando a primeira onda entrasse, Gabriel ficou o tempo inteiro por dentro, quando a primeira onda apareceu no horizonte, apesar de remar para se posicionar, ficou visível que o brasileiro remava sem vontade, assim, rapidamente Jack meteu uma boia malandra em Gabriel para abrir a bateria, o australiano surfou uma onda que não rodou e também não ofereceu espaço para manobras, surfando “retoside” Jack recebeu um justo meio ponto, sem a prioridade o australiano se manteve mais embaixo no outside, pegando uma outra onda que coube duas manobras no lip, essa onda lhe rendeu 4.50. Gabriel veio na onda de trás, trocando a borda, verticalizando, apresentando rasgadas e laybacks que raramente temos a oportunidade de vê-lo executar, nesta onda Gabe recebeu 6.33, com apenas uma onda, o Champ se mantinha à frente de Jack, mas a essa altura o australiano tinha a prioridade em suas mãos, poucos minutos depois, entrou a melhor e a última onda surfavel da bateria, Robbo fez um tubo relativamente deep, finalizando a onda com uma batida, foi remunerado com 7.83, neste momento faltavam 20 minutos para o final da bateria, e, contrariando a poesia que diz: “A vida vem em ondas, como um mar... Num indo e vindo infinito” o mar simplesmente parou. Tem um ditado popular que diz que “em um mar calmo, a alma encontra paz”, certamente isso não reflete a realidade do surfe, a cada minuto que passava de calmaria, ao menos a minha mente se tornava um oceano turbulento, acredito que todos nós ficávamos mais desesperados a medida que os minutos passavam. Sem conseguir surfar uma segunda onda, fato praticamente inédito na carreira de Gabe, o inacreditável aconteceu, o tempo da bateria acabou e Gabriel Medina foi eliminado com a prioridade nas mãos, o brasileiro teve que saborear o gosto amargo da derrota para o mar, às vezes, o surfe tem disso. O confronto para avançar para a final estava perdido, o silêncio da calmaria do mar afogou a possibilidade dos nossos gritos de “É Campeão!”, com isso a expectativa para o ouro masculino acabava, mas ainda existiam outras possibilidades.
Depois desta derrota marcada pela inacreditável falta de ondas, começamos a ver uma enxurrada de pessoas e veículos cogitando a possibilidade de uma piscina de ondas para competições em olimpíadas. Devo dizer que adoro assistir as competições na piscina do uncle Kelly, a piscina oferta para todos as mesmas condições, obviamente o talento e o estado mental são os elementos que determinariam as vitórias, certamente em uma piscina teríamos decisões mais justas. Acredito que em uma competição de várias etapas uma piscina pode equilibrar o jogo, como acontece no tour, mas será que nas olimpíadas ela funcionaria? Me questiono - Se a olimpíada fosse em uma piscina nós veríamos uma onda como o 10 que não deram a Gabriel? Nós veríamos uma bateria no nível da de João Chianca e Ramzi Boukhiam? Nós teríamos a foto mais icônica da olimpíada, digna de ser exposta no Museu do Louvre? E se tivesse ondas como no Round 3, nós podemos garantir que Gabriel venceria? Enfim, certamente a falta de ondas não é o que nós desejávamos, mas quem é do surfe sabe que isso é do surfe, em um evento único como as olímpiadas, uma piscina não representaria a verdade de nosso esporte, nós somos do mar, e para definir um campeão, é lá que devemos estar. Isso é um raciocínio tão simples quanto a afirmação de Belchior quando ele diz: “Não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração”, apesar da simplicidade explicita, muitos não entendem.
A derrota para Robbo com participação mais que especial de Netuno, não foi necessariamente o fim, Gabriel ainda tinha a honra de defender a medalha de bronze para o Brasil, nesta disputa, em condições menos ruins, com pequenas séries entrando, Gabriel teve a oportunidade de poder surfar e honrar a intimidade de longas datas que ele tem com a bancada de Teahupoo, com pequenos tubos e grandes manobras o brasileiro somou o total de 15.54 pontos, derrotando o bom goofy peruano Alonso Correa. Além da medalha de bronze, não é demais repetir que Gabriel protagonizou a imagem mais icônica desta olimpíada, talvez de todas as olimpíadas, graças a Jerome Brouillet.
Tatiana Weston-Webb entrou nas semifinais com a faca nos dentes, em uma visível desatenção logo no início da bateria, sua adversaria Brisa Hennessy cometeu uma interferência boba e teve sua segunda nota anulada, contudo, ainda que a interferência não fosse computada, Tati venceria a bateria com folga. Faltando dois minutos e já classificada pelo fato de estar somando mais de dez pontos, Tatiana surfou aquela que foi a melhor onda do dia até então, consequentemente recebendo a maior nota, também até então, 8.33.
Ao perder para Tati, Brisa disputou o bronze com a francesa Johanne Defay, em uma bateria com poucas oportunidades, Johanne garantiu o bronze.
O surfe, assim como a vida, é um palco onde a alegria e a tragédia se entrelaçam, quando a final masculina entrou na água, Jack Robinson dava sinais de que iria fazer o seu melhor, afinal, ele derrotou mesmo que sem muita convicção, John John, Ethan e Gabriel, mas o destino tem um humor ácido, ele te oferece a felicidade, para, em apenas um piscar de olhos, te privar dela. Quando a sirene da final soou abrindo o confronto, ao longo de trinta e cinco minutos apenas três ondas surfáveis quebraram, duas surfadas pelo local Kauli Vaast (9.50 e 8.17) e uma por Jack Robinson (7.83), isso aconteceu nos 10 primeiros minutos de bateria, deste momento em diante, nada além disso ocorreu, os dois surfistas ficaram sentados em suas pranchas, Jack aguardando a apatia do mar ir embora, Kauli, certamente desejando que o oceano continuasse inerte. A mesma falta de ondas que tirou a possibilidade de Gabriel Medina disputar o ouro, tirou também o possível ouro de Robbo, mais uma vez parafraseando Belchior, “a felicidade é uma arma quente”, o australiano se despediu das olimpíadas com uma melancólica derrota de prata, Kauli, na presença de seu povo, com uma orgulhosa vitória de ouro.
Tati Weston-Webb e Caroline Marks entraram na agua para disputarem o ouro feminino na sequência, depois da derrota frustrante de Gabriel, creditada na conta de Netuno, a nós restava uma última esperança, a esperança de que Tati repetisse a magistral apresentação que ela fez em Teahupoo na etapa do CT este ano, onde a gaúcha anotou o primeiro 10.00 perfeito de uma mulher naquela bancada, em um dia muito perigoso até para os homens, apesar de nossa esperança, infelizmente o mar não apresentava algo nem próximo do que foi naquele 29 de maio de 2024, e, infelizmente como em todas as outras baterias do dia, as poucas possibilidades de surfar ondas de qualidade se impôs como realidade, neste cenário, a atual campeã mundial, Caroline Marks, soube aproveitar melhor as poucas oportunidades. A americana que tinha feito o maior somatório da primeira fase, fez ainda a melhor nota da bateria final em um combo de tubo e manobras, recebendo 7.50. Tati tentou reagir com o mesmo roteiro de tubo e manobras, mas o tubo de Caroline foi mais longo, mais deep, e a onda bem melhor, o que em comparativo determinou uma nota menor para Tati, a brasileira recebeu 5.83, Caroline fez ainda uma back up wave de três pontos, onda que serviu para solidificar sua vitória em um palco que não estava nem de longe em seus melhores dias. Sob a bela luz da Polinésia Francesa, no rosto rouge da atual campeã mundial e agora também campeã olímpica, o sorriso brilhava como o ouro que ela acabara de conquistar.
Na segunda olimpíada do surfe, Caroline Marks repetiu o feito de sua conterrânea Carissa Moore, se tornando a segunda americana campeã olímpica, Tatiana Weston-Webb mostrou que continua sendo uma das grandes, Kauli Vaast explodiu de felicidade o coração dos polinésios ao garantir que o ouro fosse guardado sobre o solo sagrado do Taiti, ainda que a medalha fosse creditada para a França, Gabriel Medina ficou no meio do caminho, pairando sobre ele mais uma vez a sensação de injustiça, Jack Robinson garantiu a segunda medalha olímpica para o surfe australiano, e o surfe, bem, o surfe pôde mostrar aos não surfistas sua melhor face. Seja na beleza da onda quase perfeita de Gabriel, na bateria insana de Chumbinho e Ramzi, nas imagens de tirar o folego das belíssimas paisagens polinésias, ou até mesmo na surpreendente inconsistência de ondas no dia final, o surfe é tudo isso e muito mais, o surfe é uma dança desafiadora contra as forças da natureza, é um momento de profunda imersão em si mesmo, é resiliência, determinação e felicidade, o surfe nos conecta com o essencial, é uma combinação perfeita com o espirito olímpico, e as olimpíadas, descobriram isso.
Surfe é vida, o resto é onda!
Até Los Angeles em 2028.
PS.: Cabe um agradecimento especial a todo o trabalho e dedicação de uma pessoa fundamental para o time brasileiro, alguém que não está preocupado com holofotes, e sim em dar o seu melhor pelo esporte. Parabéns Paulo Moura, sem você essa caminhada seria mais difícil!
Chagas, excelente texto!
Estava sentindo falta das suas matérias aqui no Vision surf.
Essas olimpíadas deu uma boa chacoalhada no surfe e, com certeza, deu visibilidade jamais vista ao esporte. O Medina que antes tinha 10 milhões de seguidores no Instagram agora tem 14 milhões, isso um cara que já era consagrado, podemos imaginar a audiência que o surfe teve naquele épico dia do terceiro round e no dia das finais. Milhões de pessoas assistindo nas TVs e no YouTube em todo o mundo. Cabe a WSL parar de fazer tantas besteiras e reformatar um produto que possa conquista
r os novos interessados e curiosos e expor as delícias do esporte, ao invés de ficar criando novos "queridinhos" gringos e…