Quando venceu seu primeiro título mundial em 2014, Gabriel Medina não apenas se tornou o primeiro brasileiro campeão mundial como também o primeiro surfista campeão mundial sem ter o inglês como língua mãe, Gabriel naturalmente se projetou como a imagem de uma nova era no surfe. Ao vencer Kelly Slater e Mick Fanning, os dois maiores surfistas em atividade à época, o brasileiro não apenas deu início a uma troca de guarda, ele deu início a uma troca de guarda que abalou gringos e não gringos, Gabriel catapultou o Brasil como uma potência do surfe mundial. Hoje, sete anos depois, já com Adriano e Ítalo como campeões mundiais, o tricampeonato de Gabriel Medina impõe ao mundo do surfe a mais difícil realidade de todos os tempos, é fato, nunca existiu um domínio tão grande dentro do circuito mundial como é o domino dos brasileiros hoje. Em qualquer tipo de onda, ou em qualquer formato esdruxulo, o Brasil é a maior potência do surfe mundial, e, apesar da ausência da CBSurf na base, isso vai demorar para mudar.
O WSL Finals é um formato que a WSL achou para tentar dar ao surfe maior audiência, visibilidade e receita, se é justo ainda não sabemos, mas ontem coincidiu de o melhor surfista do dia, ter sido o melhor surfista do ano.
Gabriel Medina chegou ao criticado WSL Finals com mais de dez mil pontos à frente de Ítalo Ferreira, então vice-líder do ranking. Essa diferença em anos anteriores daria a Gabriel o título de campeão mundial antecipado, mas com o WSL Finals isso virou uma incógnita, contudo, para ser um tricampeão a mente tem que ser sadia, confiante e determinada, do auto de sua superioridade numérica, Gabriel esperou o vencedor dos confrontos iniciais para conhecer o adversário com o qual ele disputaria as baterias que poderiam confirmar o titulo.
Do palanque o brasileiro viu a única bateria entre os homens que não tinha um brasileiro, Morgan Cibilic e Conner Coffin disputaram entre si para ver quem encararia o primeiro brasileiro a entrar na água, Filipe Toledo. Morgan não se entendeu com Trestles, uma onda cheia la fora, na maioria das vezes com lip esfarelando, uma onda bem diferente de Newcastle, Narrabeen e Rottnest Island, ondas mais em pé e com lips mais definidos, características que permitiram a ele fazer seus melhores resultados, embora em Trestles Morgan tenha perdido de cara, ele não deixou de ser uma das sensações do ano, o garoto foi o Rookie Of The Year, e ainda disputou o título mundial em seu ano de estreia, depois do vice campeonato do Julian em 2018, a presença de Morgan no WSL Finals foi uma pequena esperança para os antigos protagonistas do surfe, esperança que durou pouco, Conner explorou ao máximo seu surfe de borda, executando linhas mais limpas com melhores conexões, empurrando mais o pé de trás, fazendo um surfe com carvins mais amplos. Vamos ver se ao menos dessa vez a australiana STAB acerta o nome do americano que desclassificou o único surfista aussie presente no grande dia final.
Na bateria seguinte Conner entrou confiante contra Filipe, o americano abriu sua bateria fazendo a melhor nota do heat, mas Filipe respondeu em tempo real com uma onda bem similar e na sequencia colocou um backup wave na casa do excelente, confirmando tudo aquilo que nós já sabíamos, que o título mundial seria do Brasil. Ao dispensar Conner Coffin, só restavam Filipe, Italo e Medina na competição.
Há anos morando em San Clemente, Filipe é de longe o cara que tem mais horas surfadas em Trestles dentre os cinco finalistas, ele encarou a difícil missão de surfar contra o campeão mundial e olímpico Ítalo Ferreira, esses dois tem histórico de confrontos extremamente equilibrados, com quatro vitorias para cada lado, a bateria de desempate foi a disputa mais importante de todas elas e Filipe não deu chances a Ítalo, o paulista surfou quatro ondas, todas superiores a sete pontos, Filipe abusou da borda, inverteu direção, usou de todo seu conhecimento do pico para encurralar Ítalo, o campeão olímpico parecia um pouco perdido com as longas paredes de Trestles. Ítalo tem um desempenho infinitamente melhor em ondas mais curtas e mares mais tortos, onde o jogo dos aéreos prevalece, mas quando as ondas são longas e manobráveis ele deixa de ser aquele cara quase imbatível. Esse perfil de onda acaba funcionando para ítalo como uma espécie de Kryptonita, seu desempenho diminui bastante, melhor para Filipe que chegou na terceira posição e ao passar por Ítalo garantia no mínimo o vice campeonato, tornando 2021 o melhor ano de sua carreira independente dos confrontos que ainda teria contra Gabriel Medina.
Antes de falar das finais dos homens é preciso falar das meninas, Tatiana Weston-Webb e Carissa Moore fizeram baterias equilibradas, com a exceção do segundo confronto onde Carissa deu um nó em Tati. Com a vitória na segunda bateria Carissa levou a disputa para a melhor de três, na super final a havaiana se manteve na frente o tempo todo, no finalzinho Tati teve a chance de virar, ela vinha em uma direita onde fez duas manobras muito grandes na saída, com possibilidades reais de alcançar a nota que precisava, 8.58, contudo, ao tentar finalizar na junção a brasileira caiu. Em poucos segundos Tati saiu da posição de candidata ao título para se tornar vice-campeã mundial, e a menina que há anos atrás competia com os meninos no Havaí, que hoje é uma das melhores surfistas da história, caminhando a passos largos para se tornar a maior, sagrou-se pentacampeã mundial. Parabéns Carissa Moore pelo ano incrível, campeã olímpica e campeã mundial.
Quando Gabriel Medina e Filipe Toledo entraram na agua para decidir o título, entravam os dois maiores vencedores de etapas do tour na atualidade, Gabriel o maior vencedor com incríveis 16 vitorias e Filipe o segundo com 10 conquistas. Gabriel é o cara que desde 2014 está na disputa do título todos os anos, um predador incansável, em Trestles ele chegou na posição que todos queriam, algo um pouco paradoxal, isso porque embora sua posição fosse bastante confortável, ele chegou em Trestles com o título moral nas mãos, já que tinha mais de 10 mil pontos à frente do vice líder. Por motivos óbvios, Gabriel era também o cara que tinha mais a perder nessa competição, já Filipe, embora não tivesse a pressão de ter que defender um título que anteriormente já estaria ganho, tinha a pressão de disputar pela primeira vez uma bateria que poderia lhe colocar na galeria dos campeões mundiais, por isso, entrou na água com a lycra pesando toneladas.
Filipe é o cara que naquelas condições tem o surfe mais eficiente do mundo, embora ele tenha apresentado um surfe que venceria qualquer outra bateria anterior, para vencer Gabriel além de muito surfe é preciso ter também muita vontade, sangue frio e estratégia, mas a estratégia de Filipe na primeira bateria parecia ser não arriscar muito, ele não usou todo o arsenal progressivo que possui e o pouco que usou, não acertou com a facilidade de outros tempos, já Gabriel surfava sem moderação, aplicou floaters imensos para passar seção, buscou a esquerda para executar um combo de layback com aéreo e assim colocar a primeira mão na taça, ao vencer a primeira bateria.
No segundo confronto Filipe foi para o tudo ou nada, logo em sua primeira onda ele foi tão progressivo que fez Kelly dizer na transmissão que parecia estar vendo um vídeo game de surfe, essa afirmação de vossa majestade fez ainda mais sentido quando Gabriel veio na onda seguinte, surfando para a esquerda Gabriel abriu com um alleyoop e finalizou com um reverse, Medina estava confiante, destemido, com o modo matador ligado de tal forma que nem a presença do local máximo na agua o intimidou, e eu não estou falando de Filipe, e sim de um tubarão que interrompeu a competição por alguns minutos. Na volta, não demorou muito para Gabriel achar uma outra esquerda bem mais ou menos, uma onda de potencial cinco que ele transformou em uma nota nove ao executar aquilo que em quarenta e cinco anos de competições de surfe, só ele ousou fazer em uma bateria, ele já havia feito isso aqui no Brasil há uns anos atrás, agora, na bateria final, valendo seu tricampeonato mundial, Gabriel repetiu a ousadia, se confirmando como o único surfista a executar um back flip em bateria, no caso de Trestles, o segundo back flip. A essa altura o vídeo game já havia sido atualizado com versões mais modernas, Gabriel sinalizava para Filipe que caso o ubatubense quisesse vencer teria que chegar no nível de variação e comprometimento que apenas ele, Gabriel Medina havia chegado, e, mesmo que ainda faltasse quinze minutos para o final, vencê-lo não era uma opção, apesar de tentar, Filipe não conseguiu acertar mais nada.
Com o back flip, o cara que chegou com a superioridade de dose mil pontos de diferença acumulados em apenas sete etapas, derrotou no surfe e sobretudo psicologicamente o único surfista que havia vencido um adversário melhor ranqueado, Filipe chegou na terceira colocação e saiu vice-campeão mundial, Gabriel Medina chegou tricampeão mundial moral e saiu tricampeão mundial de fato, uma vitória que coroou a meritocracia e amenizou bastante as críticas que a WSL receberia caso Gabriel Medina não fosse o campeão. Até o “The New York Times” o jornal mais importante do mundo, publicou uma matéria muito bem embasada no último sábado, dia 10 de setembro, contestando bastante o formato escolhido, que não é exatamente o mais justo, mas ao menos no ano de estreia, venceu realmente o melhor do ano, não apenas o melhor do dia.
Polemicas a parte, o Brasil, um país que até sete anos atrás jamais havia vencido um título mundial, em 2021 conheceu um tricampeão, seu nome? Gabriel Medina. Mesmo com todas as virgulas que uma competição como o WSL Finals poderia apresentar, era difícil acreditar que esse título não fosse para Gabriel, depois de 2019, onde ele tinha a chance mais clara de título na carreira e deixou o troféu escapar, depois de toda polemica de sua derrota nas olimpíadas, depois dele chegar em Trestles com uma pontuação que nos anos anteriores lhe daria o título antecipadamente, Gabriel foi Gabriel e entrou na galeria onde estavam apenas Tom Curren, Andy Irons e Mick Fanning, ao ingressar nesse seleto grupo, ele se torna o maior goofy da história. Embora eu concorde em gênero, número e grau com essa afirmação, essas palavras não são desse colunista, elas são do bicampeão mundial Damien Hardman, assim como Gabriel, também é goofy.
Em 2014 o país do futebol vivia um luto profundo em virtude do massacre do Mineirão, aquele fático 7x1, Gabriel Medina lavou a alma de surfistas e boleiros ao fazer história vencendo o primeiro título mundial para o Brasil, ele transformou o país do futebol no país do surfe. Em 2018, novamente em ano de copa do mundo, Gabriel venceu seu segundo título em uma das performances mais arrasadoras já vistas em Pipeline. Em 2021 Gabriel venceu na onda onde ele foi vítima de um dos maiores erros da arbitragem do surfe, um erro tão grotesco que o fez questionar se valeria à pena ele continuar competindo. Ao vencer em Trestles ele deixa para trás essa história vergonhosa e escreve a história mais bonita de sua carreira.
Parabéns Gabriel, você igualou suas conquistas às de seus ídolos, dentre eles Ayrton Senna. O tricampeonato chegou em um momento muito polêmico na vida pessoal de Medina, quando ele precisava provar para si mesmo que suas decisões foram corretas, o tricampeonato chegou em um ano onde ele escolheu sair de sua zona de conforto e virar homem, mesmo que para isso tivesse que confrontar sua própria história.
Depois da vitória, ainda no mar, o tricampeão disse em entrevista: Conquistei o meu maior objetivo no surfe, estou chorando agora porque é um mix de emoções. Estou feliz, emocionado, sou feliz de fazer parte desse time, eles me puxam meu nível e eu puxo o nível deles. Gabriel se referia aos outros competidores brasileiros.
Já na areia o champ disse: Não é todo dia que você realiza um sonho, todo sonho parece impossível, hoje é um dia especial pra mim, eu tenho isso há muito tempo comigo. Tem que trabalhar duro, não tem outro caminho. Tem muita paixão, tem que deixar o surfe falar, esse dia vai ficar pra sempre na minha vida, tive que surfar muito pra conquistar.
Já lhe demos os parabéns, agora é a hora do OBRIGADO Gabriel, você foi grande, foi forte, foi incontestável, o surfe brasileiro agradece.
Aloha!
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